“Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor” (Nelson Cavaquinho).
Por vício ou compromisso, sempre caminho pela cidade. Aprendi a observar e sentir o cotidiano, fico atento aos sons, às vozes e ao silencio significativo do povo. Procuro, como sempre, uma inspiração para uma crônica ou artigo, enfim, algo para alimentar meu blog e/ou uma coluna impressa, mas está difícil. O que vejo por aqui? Muito desencanto, desânimo excessivo, revolta. E algo ainda pior, o conformismo. O que me faz lembrar do português José Saramago, escritor de estilo persuasivo.
Quem já leu Saramago sabe o que esperar. Uma literatura maculada de ironia, de um escritor que tem o senso crítico apurado. Para citar dois exemplos, dentre o conjunto de sua obra, fiquemos com “Ensaios sobre a Lucidez”, que, recomenda-se, deve ser lido concomitantemente a “Ensaios sobre a Cegueira”.
No primeiro, o Prêmio Nobel de Literatura nos conta uma historia fictícia, uma fábula. Na capital de um país imaginário, num dia chuvoso, poucos eleitores compareceram para votar durante a manhã. Preocupadas, as autoridades responsáveis pelo pleito chegaram a supor que haveria uma abstenção gigantesca. À tarde, quase no expirar do prazo, centenas de milhares de eleitores compareceram aos locais de votação. Formaram-se filas quilométricas, e tudo pareceu normal. Mas, para desespero das ditas autoridades, houve quase setenta por cento de votos em branco. Uma catástrofe. Longe da tradicional divisão dos votos entre os partidos da direita, do centro e da esquerda, o que se verificou foi uma opção radical pelo voto em branco. Usando o símbolo máximo da democracia, o voto, os eleitores pareciam questionar profundamente o sistema de sucessão governamental naquele país. É desse “corte de energia cívica” que fala Saramago. Ficava evidente que as instituições, partidos políticos e autoridades haviam perdido a credibilidade junto à população. O voto em branco fora uma manifestação inocente, um desabafo, sinal de indignação pelo descalabro praticado por políticos dos vários partidos. Diferentes, mas de atuações iguais, a usufruir de privilégios que afrontavam a população.
Sentindo-se ameaçados, os governantes trataram de agir em nome da ordem, perseguindo, prendendo, maltratando, eliminando. Alguns dos que viveram os horrores da cegueira branca, voltaram a sofrer. Preocupados em salvar a própria pele, em garantir o poder, os governantes não perceberam que a cegueira branca de outrora, demonstrativo de que há muito o homem estava cego, tinham paralelo com o voto branco de agora, indicativo de que a população não perdera a lucidez.
É desse ponto que passa a se desenvolver a trama do livro: o governo e as autoridades deixam a cidade entregue a si própria, abandonando-a e isolando-a. Acabarão por entrar em cena os mesmos personagens de “Ensaio sobre a Cegueira”, daí a recomendação de que os dois livros devam merecer leitura concomitante.
Em “Ensaios sobre a Lucidez”, Saramago desenvolve uma crítica mordaz às instituições do poder político, ao sugerir que sob a democracia podem estar vetores de natureza autoritária. Alguns leitores chegaram à conclusão de que o autor usou de certa superficialidade na exploração do tema e na própria elaboração da narrativa. Esta, não obstante o estilo inconfundível, não chega a entusiasmar da mesma forma que “Ensaio sobre a Cegueira”, livro de narrativa épica, extremamente rico de emoções. Afora a preciosidade na demonstração de aspectos caricatos dos indivíduos e de toda uma sociedade, a viver num ambiente de completo caos, revelador de tudo o que de bom e, sobretudo de mau o ser humano é capaz. “Ensaios sobre a Lucidez” fica muito aquém desse grande livro, valendo, ainda assim, como outro original exemplo de descrição da fragilidade da sociedade política.
Mas, voltando à realidade, como será que o leitor vê e sente os comportamentos acima descritos?
No próximo mês, ou seja, outubro deste ano, teremos eleições para presidente, governadores, senadores e deputados. Em 2016, eleições municipais. Talvez você, leitor, possa fazer um exercício de rebeldia, de protesto. Iniciar uma campanha pelo voto em branco ou nulo. Ou, como na obra literária acima comentada, não comparecer às urnas. Seria uma maneira inédita de demostrarmos nosso descontentamento com os nossos políticos.
Estou em um momento de profundo descrédito com a classe política brasileira, principalmente a local. O executivo e o legislativo nos deixam indignados com atuações que não condizem com seus cargos. É com tristeza que confesso: perdi a fé.
A insensibilidade, a frieza e a preguiça são explicitadas em tantas ações e omissões que, para além do “fingir que faço”, ao meu modo de pensar, descortinam algo mais sério, mais profundo, que precede tais posicionamentos alheios à sociedade: a vaidade, o apadrinhamento, o imediatismo latente, a manutenção do poder acima de tudo e de todos.
O quadro atual propõe, antes que seja tarde, a mobilização do cidadão. Não mais aquela que há 24 anos a levou à emancipação política. Urge mobilizar toda a cidade, para defender a transparência, a moral, a ética e a democracia, o bem-estar do corpo e do espírito, defender os valores da sociedade, do presente e do futuro.
Votar em branco ou nulo pode ser uma solução radical, extrema, mas, é uma maneira de conclamar nosso povo a lutar pela sobrevivência, pela liberdade de pensar e de agir, de expurgar a submissão e a apatia. O “brasileiro cordial”, de que falava Sérgio Buarque de Hollanda, esse não nos contempla ou interessa mais.
Precisamos criar movimentos de bairros, grupos de discussão e de mobilização social, participar deles e fomentar a participação por parte de outros. Que sejam movimentos voltados para a construção de uma nova cidade, uma cidade com nosso jeito de ser, sem mentiras e dissimulação, sem a corrupção que toma conta do país.
Quem sabe votando em branco, falo de todos nós, sem exceção, num gesto de exasperada indignação, não lográssemos acordar os governantes, sempre muito ocupados com a gestão de situações voltadas para objetivos midiáticos e eleitorais, sempre distantes da simples percepção das realidades cotidianas que trazem desconforto à coletividade.
Quando o eleitor vota em branco, vota pela insubmissão, vota pela justiça e pelo livre pensar, vota por todos nós.